[viviparos_portugal] Resistencia selecionada ao frio

Miguel Andrade Cyprinodon 5uLOn3EgQFD-5BRe8WWSiyciUCP1bfoGoZDo2e5AIbi4xV5M7rC1SMiFsflDVd94cCwXDdJEdo6y.yahoo.invalid
Quarta-Feira, 14 de Maio de 2008 - 23:44:52 WEST


Olá Miguel,

A tua teoria é interessante mas não deixa de ser excessivamente optimista.
Alguns dos teus pressupostos estão correctos e podem ser ( ou já foram )
cientificamente comprovados outros...
Numa espécie de distribuição geográfica muito ampla, há populações tão
diferenciadas que as probabilidades de sucesso na adaptação a condições
ambientais específicas, fora do comum para a espécie, podem estar de facto
intrínsecas.
Como exemplo vejamos o caso Oreochromis mossambicus.
Da última vez que estive na África do Sul, fizeram-se sentir temperaturas
anormalmente baixas, causadas por uma frente polar fora de época ( Primavera
); enfim coisas do aquecimento global.
O que é certo é que na entrada para o restaurante havia um pequeno lago
artificial, com cerca de um palmo de altura de água, onde eram mantidos
crocodilos bebés e uma multidão de pequenas Tilápias desta espécie medindo
no máximo uns 15 cm de comprimento.
Tenho sempre o ( bom ) hábito de levar comigo um vulgar termómetro de
aquário quando viajo para fora.
Geralmente o mesmo já vai devidamente atado a um cordel e sempre que a
ocasião surge... lá vai ao termómetro " ao molho ".
Mas voltando ao dito lago.
No primeiro dia a temperatura estava já a 15ºC à hora de almoço.
Nesse mesmo dia à hora de jantar havia tinha descido aos 12ºC.
Sim, em África também faz frio às vezes !
No pequeno almoço do dia seguinte, com o tempo a piorar e nós sem os devidos
agasalhos ( pois tínhamos ido fazer um safari " tropical " ), a água
apresentava-se já a uns incríveis 9ºC !?!
Ao retornar ao acampamento nessa noite, depois de um cansativo ( e
incrivelmente frio ) dia a fotografar animais... lá foi o termómetro à água.
De facto tinha sido um safari gélido e o vento forte de Sul tinha secado
tudo havendo muita poeira no ar.
No lago a temperatura era de... uns escassos 10ºC.
Depois de mais uma noite fria e ventosa o pequeno-almoço revelou uns
espantosos 9ºC, iguais aos do dia anterior à mesma hora. Apesar disso os
peixes, embora muito parados no fundo, aparentavam estar " de saúde " e
fugiam do contacto com um pau.
Felizmente para os turistas ( e para as Tilápias em particular ), o tempo
mudou durante essa manhã.
Mais uma longa volta de todo-o-terreno e de novo o regresso só de noite.
Na pausa para o único Safari nocturno do programa, mais um jantar no
restaurante e... termómetro à água.
A leitura - 13ºC.
De facto o tempo tinha mudado notavelmente.
No último dia no acampamento... o calor " normal " para a época regressava (
finalmente ).
O dia amanheceu fresco e no lago lá estavam os mesmos 13ºC medidos nessa
mesma noite ao jantar.
A partida iria ser da parte da tarde, pelo que a minha última oportunidade
de " molhar o termómetro " seria no derradeiro almoço antes do regresso a
Moçambique.
De facto com a mudança do vento o calor regressou em força.
Há hora de almoço o ar deveria estar seguramente perto dos 30ºC e no lago...
já uns confortáveis 20ºC, os quais, embora demasiado frios para a época do
ano, desaconselhavam já grandes aproximações à água, pois os pequenos
crocodilos já se mostravam de novo activos, ( e atentos ao movimento dos
mergulhos do termómetro ).
Atenção porque, mais uma vez relembro, estávamos na Primavera, não no
Inverno.
Perguntei a um jardineiro se havia peixes naquele lago todo o ano, ao que
ele me respondeu que sim pois de vez em quando eram lá postos mais alguns
para substituir os que os crocodilos pequenos comiam.
Perguntei-lhe também se seriam iguais aos que lá estavam.
Ele respondeu-me que sim, pois o lago grande ( artificial ) só havia duas
espécies " catfish " e " blou kurper ( Tshikwia ) ", leia-se Clarias
gariepinus e Oreochromis mossambicus.
Espero que não duvidem que sei distinguir um peixe gato de uma tilápia !
Quando a identificar a espécie de Tilápia... se ainda duvidam dos meus
dotes, é só relerem a resposta do jardineiro.
De qualquer forma a espécie Clarias gariepinus tolera temperaturas
compreendidas entre 8ºC e 35ºC, por isso não seria de admirar se resistisse
aos mais que prováveis 8ºC da madrugada mais fria da minha estadia,
provavelmente igual ao dia mais frio do Inverno por aquelas bandas.
Agora a Tilápia de Moçambique em princípio não estava preparada para
sobreviver, no entanto aquelas estavam vivas.
As que mantive muitos anos cá em Portugal apresentavam uma temperatura letal
entre os 11ºC e os 14ºC, conforme as circunstâncias... e nunca sobreviveram
ao nosso Inverno no exterior.
Apesar de as fazer passar o Inverno entre 14ºC e 16ºC ( porque deixavam de
se alimentar aos 15ºC ), não deram mostras de melhorarem a resistência ao
frio em 14 gerações.
Da minha experiência, a tolerância termal sem efeitos negativos encontra-se
entre 15ºC e 35ºC ( ou ligeiramente mais até ). Aliás, esta informação pode
mesmo ser comprovada em inúmeras fontes credíveis que coincidem todas nos
valores entre 15ºC e 37ºC.
No extremo Sul de Moçambique ainda estamos muito longe das fronteiras
setentrionais da espécie e aí as temperaturas dos rios podem chegar no
Inverno aos 17ºC ou talvez menos.
Mas... há sempre um " mas ".
Esta espécie na natureza ocorre desde a bacia hidrográfica do Rio Zambeze,
no Centro de Moçambique até ao Rio Pangola, na África do Sul ( isto é, entre
os paralelos 17º S e 33º S ), contudo, em água salobra a espécie vai mesmo
até perto de Port Elizabeth, na Província do Cabo, ( muito mais para Sul do
que o Rio Pangola ).
Ora, não é segredo para ninguém que no extremo Sul da sua distribuição
geográfica já faz algum frio no Inverno... mas a diferença para o nosso
Algarve, por exemplo, é que as temperaturas baixas ficam apenas por pouco
tempo.
Ainda assim, estas Tilápias, nessas latitudes mais a Sul, procuram
tendencialmente refúgio na foz dos rios e mesmo no mar, durante os dias mais
frios do ano, sendo uma forma " inteligente " de compensarem a perda de
defesas naturais do organismo causada pelo frio, mas sobretudo de procurarem
águas mais quentes.
O incrível potencial e o bom resultado decorrente dessa migração sazonal
pode se confirmado em inúmeros trabalhos científicos como o do exemplo (1).
São notáveis as latitudes extremas onde a espécie se estabeleceu quando
introduzida noutras partes do mundo... contudo sempre em água salobra ou em
pleno oceano nas regiões mais frias ( por vezes bem mais frias até do que o
Sul de Portugal ).
Há porém um número reduzido de populações na Província do Cabo que toleram
temperaturas mínimas na ordem dos 6ºC a 8ºC !?!?
Constou-me que houve alguém que conseguia manter esta espécie no exterior
durante todo o ano em Lisboa.
Seriam esses indivíduos descendentes das populações do Cabo ?
As minhas não eram de certeza absoluta !
Na Internet consegui apenas encontrar como temperatura mínima no limite para
esta espécie os 9.5ºC ( Shafland e Pestrak 1982 ), no artigo (2), sendo que
o mais corrente é fixarem-se os limites mínimos letais entre 10ºC e 15ºC em
toda a literatura ou nos sítios da Internet.
Atenção que estamos a falar dos limites em que estes peixes não sobrevivem
mais do que umas escassas horas.
Daqui se podem concluir algumas premissas elementares.

a) uma espécie tida vulgarmente como tropical e pouco tolerante ao frio (
15ºC ) pode resistir a descidas bruscas de temperatura, desde que por tempo
limitado, e recuperar bem disso.

b) espécies de amplas distribuições geográficas possuem populações mais bem
preparadas do que outras para resistirem a parâmetros ambientais extremos.

c) se desconhecermos a origem dos exemplares mantidos em cativeiro, nunca
poderemos ter uma noção precisa da sua tolerância limite a este ou àquele
factor ambiental. Vulgarmente os limites para uma determinada espécie são
propostos a partir da experiência em cativeiro ( aquário / laboratório ) com
uma amostra muito limitada do potencial de toda a espécie.

d) não se pode confiar sempre num padrão definido para espécies de grande
dispersão geográfica, pelo que se formos surpreendidos com uma súbita
tolerância recorde de alguns indivíduos a baixas temperaturas, por exemplo,
tal se pode ficar mais a dever às origens desconhecidas da linhagem do que a
uma extraordinária adaptação súbita.

e) o poder de adaptação de uma espécie tem limites, os quais levam muito
tempo a moldar. As extinções em massa provam que a vida é frágil e que mesmo
as espécies que evoluem mais rapidamente não conseguem superar mudanças
drásticas em pouco tempo. Quando muito há indivíduos, populações ou espécies
mais tolerantes que ultrapassam as condições adversas migrando ou
encontrando refúgio ambiental que os permita sobreviver mesmo nos seus
limites.

Logo, a adaptação ao frio não pode ser rápida mas a ilusão que tal aconteceu
pode ter de facto lugar com frequência.
Tal sensação resultaria de uma constante exposição aos limites de
sobrevivência da espécie fazer sobressair e sobreviver apenas os mais bem
dotados do lote, os quais por sua vez serão os progenitores da geração
seguinte. Uma maior sobrevivência, ano após ano, dá-nos a falsa impressão
que a linhagem está a superar os términos conhecidos para o padrão aceite,
quando na realidade estamos a eliminar os menos bem preparados para
resistirem àquelas condições adversas ou simplesmente tivemos a sorte de
encontrar descendentes de uma população mais dotada.
Em pouco tempo esta novidade estabiliza e a hipotética " evolução " rápida
revela-se uma ilusão.
É claro que mudarei logo de opinião assim que me mostrarem factos bem
fundamentados do contrário. 


Bibliografia de referência :

(1) Jay R. Stauffer Jr. ( 1986 ). Effects of Salinity on Preferred and
Lethal Temperatures of the Mozambique Tilapia , Oreochromis mozambicus (
Peters ), Journal of the American Water Resources Association 22 (2) ,
205–208.

(2) Shafland P.L. and J.M. Pestrak. ( 1982 ). Lower lethal temperatures for
fourteen non-native fishes in Florida. Environmental Biology of Fishes 7 :
139-156.

Um abraço

Miguel 

 

-----Mensagem original-----
De: viviparos_portugal  yahoogroups.com
[mailto:viviparos_portugal  yahoogroups.com] Em nome de Miguel Figueiredo
Enviada: quarta-feira, 14 de Maio de 2008 15:26
Para: viviparos_portugal  yahoogroups.com
Assunto: [viviparos_portugal] Resistencia selecionada ao frio

Viva,

Uma geração, num viviparo, é um ano ou meons (um adulto em plena
capacidade reprodutiva tem um ano ou menos). Num ser humano uma
geração corresponde a 25 anos.

20 gerações de peixes equivalem a 20 anos reais ou, no caso de seres
humanos, a 500 anos.

A adaptação ao frio tem a ver com a forma como os processos
metabólicos decorrem e pode ser RAPIDA, desde que se baseie numa
piscina generica variada e numa capacidade já demonstrada pelo grupo
em causa.

Alguns grupos de peixes tropicais, como ciclideos africanos e os
peixes arco-iris têm maior capacidade de se adaptarem ao frio (não
faço ideia porquê).

Adaptar um Oreochromis mossambicus, proveniente de zonas onde a
temperatura nunca desce abaixo dos 25 C e frequentemente atinge os 35
C, a um clima temperado como o português é algo perfeitamente
possivel.

O mesmo já não acontece com ciclideos como escalares ou severums, para
não referir os discus.

Suspeito que o modelo africano de ciclideos, baseado no estilo
"Tilapia", tenha por base uma fisiologia muito versatil, permindo-lhes
facilmente colonizar biótipos, independemente detalhes como a
salinidade, o pH, a dureza ou mesmo a temperatura.

Já no caso dos peixes arco-iris... esses talvez provenham de
ancestrais adaptados a regiões frias.

Para certos peixes "de guerra", como ciclideos africanos ou viviparos,
acredito que a adaptação ao clima português possa ocorrer em apenas
uma ou duas gerações:

Selecionando um bom número de guppies de uma piscina genetica
alargada, digamos, uns 10000 peixes de um rio qualquer mexicano e
fazendo-os passar o inverno portugues, é bem possivel que 99% deles
morressem mas os 100 peixes sobreviventes teriam quase de certeza os
genes certos para resistir ao frio e iriam então repor a população
durante o verão.

No inverno seguinte a mortalidade seria já inferior a 50% e
continuaria a reduzir-se drasticamente.

Dado o historial de grandes glaciações na America do Norte e de
oscilações na corrente do Golfo do Mexico, é bem possivel que muitos
viviparos tenham sofrido estrangulamentos provocados pelo frio nos
ultimos cem mil anos. Estas especies irão manter ainda no genoma e em
alguns exemplares, capacidades de resistencia ao frio.

Esta hipotese precisa de ser demonstrada experimentalmente: Seria um
projecto académico interessante, relativamente barato e com uma
duraçao de dois anos...

Quando ha um factor de vida ou de morte, os seres vivos adaptam-se
surpreendentemente depressa... ou morrem. É o caso do Fundulus
heteroclitus: há populações que vivem em rios americanos incrivelmente
poluidos, onde mais nenhuma especie de peixe (nem sequer a gambusia) é
capaz de viver.

É também o caso da nossa especie. A Europa enfrentou um fenomeno
semelhante, não as glaciações, que simplemente nos aumentaram a
inteligencia, mas sim as três vagas da peste negra.

Na primeira vaga, praticamente todos aqueles que entraram em contacto
com a doença morreram. Foi uma razia. Cidades inteiras ficaram
desertas. A mortalidade dos infectados rondou talvez os 99%.

Na segunda vaga houve apenas 50% de mortes. Menos pessoas ficaram
infectadas e, dos que adoceciam, menos pessoas morriam.

Na terceira vaga, existiram apenas 1/5 de fatalidades.

Não houve quarta vaga.

Todos nós, descendentes de sobreviventes da peste negra, temos o
sistema imunitário preparado para lidar com o agente da peste negra
(ainda hoje não se sabe exactamente qual era, apenas a peste bubónica
apresenta alguns sintomas parecidos, embora com importantes
diferenças).

Curiosamente, a coisa foi de tal forma dramática que ainda hoje usamos
a expressão "quarentena": Aldeias ou navios onde se detectasse a peste
eram isolados. O isolamento só terminava quando, ao fim de 40 dias,
não houvessem novos casos. Sabemos hoje, pelos registos de óbitos,
mantidos pelas igrejas, e pelo cruzamento das mortes de familiares,
que o periodo de incubação era de, exactamente, 41 dias.


Miguel

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